quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A INVOLUÇÃO DOS BICHOS




A involução dos bichos              
Um texto de Jairo Cerqueira, Salinas das Margaridas, BA

No palco, a serpente pôs-se a falar e soltar um veneno com odor de néctar para sua plateia. Ao seu lado, havia dois tigres Dentes de Sabre com garras afiadíssimas. Mas apesar de ferozes e vorazes, lhes deviam muitos favores, por isso a inevitável reverência. 
 Lá em baixo podia se ver alguns lentíssimos elefantes e hipopótamos marcados pelos seus estereótipos de obesidade e que, abastados e satisfeitos, apenas marcavam presenças sem nenhum compromisso em se contrapor ao que estava sendo dito. Um pouco atrás, via-se um bando de carneiros cuja simplicidade no comportamento era apenas uma maneira sutil de disfarçar a impotência em suas atitudes. Eram extremamente mansos; cordeiros, na acepção da palavra. 
Contava-se também entre eles, meia dúzia de porcos que rosnavam e fediam, sem sequer se importarem com as presenças das gazelas, cheirosas e enfeitadas que desfilavam sorrisos simpáticos e convenientes. Aliás, conveniência era a tônica daquele exercício de massificação.  Burros velhos assentiam com a cabeça a cada exclamação contida naquela retórica babosa e peçonhenta. Dali saía uma mescla de palavras chulas e vernáculos que ultrapassavam os limites da capacidade parca de assimilação do que poderia ser chamado de “Vox Popolis”. 
Próximo aos bares, à direita, marcavam presenças algumas hienas bêbadas, e também, três ou quatro cachorros pulguentos prontos para lamber as suas bocas; às vezes isso era possível. Ao lado esquerdo e, para ser justo, também no meio da plateia, alguns símios que pulavam, gritavam, sorriam, aplaudiam e davam cambalhotas, pois agindo assim, arrancavam gargalhadas dos desatentos que exerciam seus direitos de ir e vir. 
Todos naquele momento estavam inebriados por aquele hálito venenoso que cheirava a mel. Todos! Exceto a vaca, que passava cagando e andando para tudo o que ali acontecia.

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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

WEB 2.0 – IV (Relacionamentos)



Quarta impressão - Final da série Web 2.0
— Cara, você já viu como as pessoas estão presas a tecnologia, tudo refém! Ninguém mais sabe acender um fogo de carvão, é preciso que se tenha uma churrasqueira turbo-mega-plus-
microssitema-xptod2-trans-computadorizado, com timer automático, resposta de segurança rápida e exclusivo alarme que informa o horário de encerrar o final de semana.
— Vixi! Que é isso? Nunca vi um bicho destes!
— Verdade. Existe!
— Pois é, como se não bastasse sermos escravos das ideologias, dos dogmas, da politicagem e outras sandices da civilização... Agora precisamos ser escravos dos aparelhos eletrônicos, dos manuais multilíngues e da criatividade ofegante.
— Credo, não precisa tanto. O que você anda lendo?
— Não é caso de leitura, é observação um tanto complexa de um mundo prolixo. O moto-contínuo inexistente faz de um tudo para prevalecer, transformando pessoas em autômatos.
— Não vai me dizer que você acredita nestas porcarias aristotélicas?
— Não acredito, e não é nem por causa de Aristóteles, mas pelos que vieram depois dele...
— Humm! Não entendi nada, quer dizer que você está estudando filosofia às escondidas? Porra cara, esta valeu meu dia!
— Não se anime muito, estou só fazendo umas pesquisas e leituras soltas.
— Leituras soltas, rá, rá, rá... Está gostando? Tá lendo o que?
— Tenho lido um monte de coisas, comecei acreditando em uma ordenação universal, depois descobri que o universo é caótico e controverso, o mundo é um embuste, a civilização é uma falácia. Não há verdade fora da dúvida, e nem sobre isso posso ter certeza.
— Caraca! Que salto! Você saiu do antes de cristo, indo beber direto nos anticristos...
— Velho, não pira, não bebi nada. Estou é bastante confuso, mas não sou nenhum anticristo.
— Calma... Não foi o que eu quis dizer, estava referindo-me aos autores que você parece estar lendo.
— Então deixa pra lá! Melhor que falemos sobre pessoas e celulares...
— Sendo isso o que você quer, faço um alerta muito sério... Depois que as dúvidas se instauram, somente com a fuga da realidade é possível viver no mundo que nos é oferecido.
— Então o mundo é diferente do que eu vejo? Você esta falando em loucura, esquizofrenia ou o quê?
— Ainda não. Estou falando que é preciso recriar um mundo onde certas percepções e sentimentos não nos incomodem. Uma fuga simples para o berço da convivência comum em sociedade. Uma das saídas é misturar-se a massa em seu delírio compartilhado. O outro modo é ser o que você está sendo agora... Um corpo estranho, um camelo em meio aos nelores®. Freud explica!
— Quase entendo o que esta me dizendo, mas não ajudou muito. Conta logo aí um dos seus casos estranhos sobre pessoas que só você conhece e não pode dizer o nome.
— Não é bem assim, não preciso citar nome de ninguém, uma pessoa é sempre muito igual as outras.
— Tá bom, fala aí o que você tem ob-ser-va-do!
— Certo... Estávamos falando sobre tecnologia e escravidão social, então comecei a perceber que as pessoas não se reúnem mais as portas das suas casas para bater papo, trocar receitas e combinar almoços. Agora o que vemos são pessoas tristes e solitárias, principalmente os idosos, que se sentam com os celulares ao lado, esperando uma porra de ligação que nunca chega.
— Só isso?
— Ou então estudantes que vão para o pátio da escola teclar em seus aparelhos e trocar memes de achincalhe, muitas vezes de si mesmos, ao invés de estarem falando sobre baboseiras de adolescentes ou participando de atividades criativas.
— Só isso?
— E as famílias, os casais, os grupos de amigos, que vão para a pizzaria, ao invés de conversarem entre si, ficam a trocar mensagens, nunca com outros distantes, mas entre eles mesmos.
— O que há de ruim nisso, as pessoas não estão se comunicando?
— Você não entendeu? As pessoas não se encontram mais, os relacionamentos acontecem por redes sociais, e-mails e chats. As pessoas se contentam com as fotos do almoço, dos netos, do cachorro novo, da nova tinta da varanda. Ninguém se conhece mais do que pela imagem plana de um avatar. Ninguém mais tem uma agenda de endereços. Tudo está na internet, boiando em uma solução invisível de eletromagnetismo aparentemente controlável... E, se esta merda sofrer uma pane geral? Você vai saber encontrar a casa nova do seu pai?
— Vai ser difícil, tenho umas fotos da casa e sei em qual bairro fica, mas não tenho o endereço...
— Então, é sobre isso que estávamos falando anteriormente, vivemos em uma ilusão controlada por nós mesmos. Acreditamos estar mais próximos das pessoas, enquanto nos isolamos cada vez mais.

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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

WEB 2.0 – III (O outro)



Terceira impressão - Série Web 2.0
— Rapaz! Celular me tira do sério...
— De novo este papo de celular? Vamos virar o disco!
— Qual é? Você é o primeiro a criticar... Agora vem com essa de “virar o disco”!
— Tá certo, fala aí o que está lhe incomodando.
— Nada demais não... Só que...
— Bora! Desembucha!
— Que porra! Vou falar... Já conversou com alguém que estivesse ouvindo músicas do celular com um fone nos ouvidos?
— Já! Isso é muito tenso... Mas não é pior que a pessoa atender o aparelho no silencioso e, sair falando na ligação. Assim, sem mais nem menos, não pedem nem licença. Pior ainda, quando não estamos olhando para a pessoa, acreditamos que as falas são para a gente... Desrespeito da porra!
— Então, é disso que estou falando! A porcaria do celular, o mau uso, está acabando com as relações.
— Velho, você nem acredita, outro dia tava com uma figura lá em casa fazendo uns negócios, o celular dela toca, ela estica o braço, pega o aparelho e diz: “Tenho que atender, é a minha avó!”.
— E aí? Parou tudo...
— Parar o que? Eu parei, mas a mina ficou lá, falando ao telefone, montada, dizendo a sei lá quem, que iria demorar e coisa e tal... Não parou nem um segundo.
— Então foi legal para você!
— Legal como? Mudei de estágio, morri!
— Se lascou! E a mina?
— A miserável, quando largou o telefone, disse: “Ué! Que foi que deu em você?”.
— Agora com esse negocio de zap zap, então...
— Bora parar... Chega deste assunto! Perdeu a graça.
— KKKKKKK shusksshuasshus!
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